
A eleição do cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio como 266º Papa, após a renúncia de Bento XVI, representou um ponto de virada na Igreja Católica. Primeiro Pontífice latino-americano, assim como o primeiro a adotar o nome Francisco — em homenagem ao santo padroeiro dos pobres —, seus 12 anos à frente do Vaticano foram marcados por importantes reformas e uma maior conexão com os problemas globais. Francisco, afirmou o especialista em Vaticano Filipe Domingues, “retomou o projeto de uma Igreja que fala para o mundo”.
Com uma postura mais progressista que seus antecessores em temas até então considerados tabu no catolicismo, como direitos da população LGBTQIAP+, o Papa obteve enorme popularidade com seus discursos sobre justiça social e meio ambiente. Ao mesmo tempo, enfrentou a resistência de grupos conservadores no Vaticano, contrários ao movimento de descentralização do poder, tradicionalmente eurocêntrico.
Reformador
Francisco Borba, coordenador do Núcleo de Fé e Cultura da PUC-SP, afirma que Papas reformadores sofrem ataques por mexer na estrutura de setores da Igreja “acostumados em ter um lugar no poder”:
— Francisco enfrentou uma forte incompreensão pois falou sobre temas como a opção pelos pobres. Por isso, foi chamado de comunista, acusado de não seguir o Evangelho e atentar contra a dignidade eclesiástica — diz — O Papa foi acolhedor e misericordioso com os fiéis, mas muito rígido com seus auxiliares diretos. Teve dificuldades para encontrar figuras dispostas a reformar a Cúria. O combate à pedofilia, por exemplo, não foi marcado apenas por acertos. Quanto mais se investigava, mais casos foram encontrados, já que os escândalos foram encobertos por muitos anos.
Em junho de 2021, o Papa fez a revisão mais abrangente do Código de Direito Canônico em quatro décadas, incluindo um artigo que contempla regras contra a pedofilia, em especial crimes de abusos contra menores cometidos por padres.
Segundo o texto, o clérigo que viola o mandamento contra o adultério “ou força alguém a cometer ou submeter-se a atos sexuais deve ser punido”, “não excluindo a demissão do estado clerical se o caso assim o justificar”. Também foram incluídos novos crimes, como aliciamento de menores ou adultos vulneráveis para abuso sexual e posse de pornografia infantil.
Borba considera que o Pontífice soube ao menos aumentar o “radar da Igreja”, que se tornou mais protetora com as minorias e os excluídos. O Papa discursou diversas vezes sobre o drama dos refugiados e visitou presídios em diversos países, do México e Chile à própria Itália.
Apesar de não ter alterado a doutrina católica, o Papa fez reformas que transformaram a estrutura do Vaticano em trabalho de descentralização da Igreja visto por Carlos Frederico Gurgel, professor de Filosofia na Universidade Católica de Petrópolis, como o maior desafio por ele enfrentado.
— Com João Paulo II, a centralização na Itália já diminuiu. Com Francisco, a Igreja buscou se deseuropeizar — diz Gurgel. — Há grupos conservadores que talvez até aceitassem a transferência do centro do poder, mas se fosse para a América do Norte — diz.
Para enfrentar a resistência interna, sobretudo de clérigos norte-americanos, Francisco passou a nomear cardeais da África, Ásia e América Latina como saída para recalibrar o poder no Vaticano, afirma Arnaldo Lemos, professor de Sociologia na PUC-Campinas e que foi padre.
— A Igreja tem uma estrutura quase medieval, não é democrática — pontua Lemos. — Se o Papa não descentralizar o poder, ela ficará cada vez mais engessada.
O Papa também adotou a convocação periódica de sínodos — reuniões entre lideranças eclesiásticas pelo mundo — e concedeu mais autonomia às conferências nacionais.
— A sinodalidade é um novo estilo da Igreja de tomar decisões. Pode ser muito bom, porque as pessoas vão participar mais, os leigos vão assumir mais posições, mas por outro lado corre-se o risco de haver um distanciamento das igrejas locais [do Vaticano] — diz Domingues.
Ouvir os fiéis
Outra medida participativa que desagradou a ala mais conservadora do clero foi a convocação pelo Papa, em 2021, do maior processo de consulta popular da História. Nele, mais de 1,3 bilhão de fiéis foram chamados a opinar sobre questões pertinentes ao futuro da Igreja, como ordenamento de mulheres, celibato, divórcio, uso de métodos contraceptivos e relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo.
— Estamos em um momento de declínio do cristianismo, um processo de secularização onde as coisas sagradas passam a ter menos importância — avalia Arnaldo Lemos, indicando como os temas em debate são cruciais para conter a perda de fiéis.
Apesar de ainda sensível para a Igreja, discutir o celibato, por exemplo, é, argumenta, central para a modernização da instituição.
— O celibato surgiu na Idade Média. A Igreja era proprietária de boa parte das terras na Europa e, com o casamento, teria de dividi-las. Hoje isso não faz mais sentido — diz Lemos.
No Sínodo da Amazônia, em 2019, bispos da região recomendaram a ordenação de homens casados para expandir a presença da Igreja na floresta e estancar a perda de fiéis. A proposta provocou forte reação dos conservadores, incluindo Bento XVI, e acabou rejeitada por Francisco.
Também discutiu-se a ordenação de mulheres para evitar a perda de fiéis indígenas para igrejas neopentecostais. Mas a proposta teve papel secundário nas discussões. “Na Amazônia, as mulheres — leigas e irmãs religiosas — dirigem comunidades eclesiais inteiras. Dizer que não são verdadeiramente líderes porque não são padres é clericanismo e falta de respeito” escreveu Francisco em seu “Vamos sonhar juntos”, lançado em 2020.